domingo, 26 de fevereiro de 2017

NERVURAS BERGMANIANAS


          








Recentemente estava eu de “bobeira” em certo espaço de tempo em um determinado dia qualquer. Que fiz? Fui ao Youtube e acessei a um velho filme que havia assistido nos longínquos meados dos anos 70. Trata-se de Face a Face, do cineasta sueco Ingmar Bergman. O enredo conta a história de uma psiquiatra, Dra. Jenny,  bem sucedida profissionalmente e casada com outro psiquiatra. Todavia ela é acometida de um colapso nervoso e sucumbe psicologicamente frente a fantasmas e emoções de seu passado que voltam dolorosamente a lhe assombrar. Embora não seja uma de suas obras mais arrebatadoras, Face a Face tem seus méritos e é um puro ouro bergmaniano. Lá estão todos os elementos das sombrias tensões que marcam o texto de Bergman, e como sempre ele nos revela o quão analfabetos emocionais somos. Vejamos, por exemplo, este seguinte trecho que a personagem fala a seu amante; algo muito estranho aconteceu comigo. Quando vim buscar Maria (uma paciente sua) havia dois homens na casa. Um deles tentou me violentar. No início quis gritar, então pensei que ele doente. Então... ele pôs seu rosto apertado em meu peito. Ficou ruborizado e tentou me penetrar. De repente, eu queria que ele fizesse aquilo. Não era estranho. Estranho é que, mesmo quando eu queria, ele não conseguia. Tudo estava vedado e seco”.
                Logo no início acompanhamos a personagem em visita a seus avós onde irá passar a noite no mesmo quarto que era dela quando criança. Lá estão intactos os mesmos objetos e decoração de sua fase menina, e por isto mesmo lá também estão intactas as suas lembranças infantis. Ao encontra-se sozinha noite adentro tentado conciliar o sono ao som sutil e irritante do tic-tac de um relógio se vê então assustadoramente vigiada por uma soturna velha. O grito de pavor lhe foge a boca e ao acender a luz nada há. Dia seguinte volta ao trabalho, mas sua vida não correrá a rotina de antes, pois aos poucos a sua própria loucura vai lhe dominando. As suas alucinações são revisitações de seu passado.
                Em outro momento do filme a personagem extravasa: “Papai era tão bom. Era alcoolista. Sempre me abraçava. Nos dávamos tão bem. Mamãe dizia: “basta de mimos”. E vovó: “seu pai pode ser bom, mas é um vagabundo e preguiçoso”.  Mamãe estava de acordo. Elas o menosprezavam e queriam o meu apoio. E foi assim. passei a me envergonhar quando papai me abraçava e beijava. Me preocupava em agradar em agradar a minha avó. Então tive minha própria filha. Anna gritava de um modo estranho. Era diferente das outras crianças. Não gritava porque estava com medo ou tinha fome. Era mais um grito verdadeiro. Era algo primitivo. Às vezes eu queria bater nela por isso. E às vezes me desmanchava em ternura. Mas sempre comigo no meu caminho. Um temor egoísta, estranho. Não deveria haver uma entrega. E a felicidade apagou-se. Lembro da primeira vez que ouvi mamãe chorar. Eu estava no quarto e ouvi mamãe e vovó falando. Vovó falava com uma voz baixa, estranha... e de repente mamãe gritou. Eu não sabia o que se passava. Eu estava muito assustada, mais por causa da voz da vovó. Fui até a sala e vi mamãe sentada numa cadeira perto da janela e vovó sentada no meio da sala. Quando cheguei ela se virou para mim e olhou. Era a cara de vovó, ainda que não era. Olhava como um cão raivoso pronto para morder. Corri para o quarto e rezei para que vovó tivesse sua cara de volta e que mamãe não chorasse. É tão horrível quando as caras mudam e não se pode mais reconhecê-las”. Isto é Bergman na veia, sacou?

                Se a angústia é a fala entupida, como escreveu Ana Cristina Cesar, em Face a Face acompanhamos o seu desentupir e eclosão. A angústia é existencialmente um fenômeno intrinsicamente humano e é a primeira manifestação da alma humana muito antes de qualquer afeto. Nascemos com angústia e com angústia convivemos. Certa vez um outro cineasta, Andrei Tarkovsk, disse que em Bergman não havia simbolismos, porém um naturalismo quase biológico. E é isto que faz Bergman em seu filme sob comento: ir além das sombras e descobrir a alma em sua mais obscura morada.
                O próprio Bergman nos revela que as pessoas (seus personagens) são emocionalmente analfabetas. Prossegue ele:elas não tem a menor auto compreensão, não sabem nada a respeito de si mesmas. Elas vivem suas vidas. Elas são educadas e talentosas, leram todos os livros, sabem de tudo, são orientadas pelo meio. Elas têm todos os recursos, mas não conseguem lidar com os abcs emocionais mais simples. Sim, somos todos analfabetos emocionais.
                Rendo-me à Bergman. Seu cinema é universal e suas obras cinematográficas beiram à perfeição fílmica, resvalando nas entranhas secretas de nossos psiquismos mascarados de personas. A alma nos demonstra ele é fêmea, e assistir um filme de Bergman é atravessar espelhos e recolher os cacos.

                      Amanhã vou colá-los de volta no lugar e poder sair por aí mostrando pros outros que sou feliz.

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 19 de fevereiro de 2017

O passado levado à serio

No passado não havia sorrisos.  Observo isso nas fotografias do belo texto de Joaquim “A Orfandade das Fotos”- se o leitor não leu, leia. Depois de minha leitura  me dei conta que raramente nas fotos dos nossos antepassados, principalmente da primeira metade do século XX, alguém se mostra francamente sorrindo. Autoridades, cientistas, escritores,  políticos, artistas, atores, todos estão lá revelando nas suas imagens uma franca sisudez. Procurei imagens de outras personalidades como  Machado de Assis, Freud,  Guimarães Rosa,  Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira  e angustiei-me com tanta seriedade. Obstinado e ainda descontente,  fui à Graciliano Ramos, Mário e Oswald  de Andrade,  Churchill, Lênin, Trotsky - escapou um ou outro riso  de Mao Tse Tung e Gandhi - mas todos, em sua maioria, levavam suas imagens (literalmente) à sério.

  Um sorriso aberto como o de Carmem Miranda, uma careta como a de Einstein, um olhar obstinado como de Salvador Dali, eram raridades. Os sorrisos eram estampados apenas naqueles que eram “sorridentes” profissionais, como Chaplin, os personagens de O gordo e o Magro, Groucho Marx e, ainda assim, eram risos expressos com alguma contenção, como se desse de ombros ao público e dissessem; “que posso fazer? trabalho com isso!”



Como diz Joaquim, a fotografia não revela a  alma e se pudesse revelar, penso que revelaria o equívoco. Hoje,  com tantas imagens banalizadas, somos aparentemente mais felizes. O pesquisador ou o arqueólogo do futuro se tivesse acesso apenas às nossas imagens, não hesitaria em dizer, “como evoluíram para a alegria”!

No passado, vestíamos a melhor roupa para a captação de nossa melhor imagem, nos dias de hoje as pessoas vestem-se (ou despem-se)  e explodem-se em sorrisos, para melhor representá-los em fotografias. A palavra “representação” cabe bem aos dias de hoje e, o exemplo  inquestionável desse moderno álbum de fotografias,  é o manual de felicidade dos nossos tempos: ele mesmo, o facebook. No facebook sorrimos, sorrimos e sorrimos. Nos álbuns do passado ou das fotografias em preto e branco impressas em papel, que, como Joaquim disse, guardados  nas caixas de sapatos, encontram-se sujeitos apáticos, severos, alguns melancólicos, todos impregnados de escuridão e de mofo.  

Ainda insatisfeito, mas já chegando à resignação, insisti e percorri ainda algumas fotografias antigas no buscador da internet, e mais uma vez me surpreendi com mais uma surpresa, ou com outras imagens que revelam um paradoxo: nos antigos carnavais brasileiro, as pessoas também posam com sobriedade, como se a câmera fotográfica fosse uma autoridade que pedisse respeito. O carnaval, uma festa tão aparentemente sorridente revela-se naqueles rostos,  um evento carrancudo. Será  realmente um paradoxo? Ou ainda, será o carnaval assim tão esfuziante em alegria? suponho que não. O carnaval mesmo para seus aficionados é uma festa pretérita, uma recordação de um momento jamais alcançado ou que se alcançará. Observem, leitores, nas suas canções, o melhor carnaval foi o que passou e que jamais repetirá. O melhor já morreu. O carnaval, assim como as imagens de fotografias,  são  representações de mais uma entre tantas ilusões humanas, a ilusão da alegria e de retorno ao passado.
Enfim, carnaval e retratos,  além de ilusões são formas de mostrar a nossa parte mais fingida.     
     

Marcos Creder

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A ORFANDADE DAS FOTOS

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Qual a serventia de uma foto sem lembranças? De que vale aqueles rostos fotografados de um instante que não existe mais? Rostos desaparecidos da vida cujos olhares ressuscitavam o burburinho hoje silenciado pela distância da memória. De que servem estes rostos e estas fotos se elas não foram feitas para os mortos? Qual vivo se interessa pelos vestígios domésticos e corriqueiros do cotidiano murcho de uma geração remota? Porém elas ainda resistem empoeiradas em meio ao mofo dos fundos das gavetas. Quantas caixas de sapato não guardam resíduos de memória de um passado desvanecido de quem não existe mais? As caixas velhas de sapatos e o fundo das gavetas são o cemitério onde estão sepultados o que deixou de existir de quem deixou de existir. Triste é o destino das fotografias de um morto.
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As fotos de um morto não me dizem nada. De nada sei o que sentia, pensava ou sonhava. Instantâneos de uma vida que não vivi, de juventudes e alegrias que não foram minhas, imagens indizíveis de migalhas de tempo onde eu não estava lá. Tudo é tão mudo e inerte nas fotos sem donos: fragmentos inanimados de uma vida invisível pelo esquecimento. São gravuras que só têm significado em função da vida daqueles que ali estão. As fotos sem o seu senhor são espectros que recusam deixar um mundo que não mais lhes pertence, Se essas fotos exalassem o aroma das flores teriam o odor dos cravos. 
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Fotos assim tão órfãs não trazem a dor da saudade ou a crueldade do rememorar da perda. São ocas e fúteis. Não se pode sentir a brisa dos ventos entre o assanhar dos cabelos nem o brilhar da paisagem nas retinas. De que lá sei eu daqueles abraços cujas mãos não se tocam mais, ou dos amores rompidos no chegar das horas posteriores? Ali devem ter desejos frustrados e anseios sumidos. Sorrisos que depois viraram lágrimas, e olhares que olham para quem não lhes olham mais. 
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Rostos opacos e obscuros. Semblantes gélidos e inanimados. Gestos petrificados. Flagrantes proscritos e extintos. Segredos desaparecidos para sempre, permanentemente. Por que, então, eles continuam ali a nos desafiar a eternidade com o registro desafiante de sua imutável finitude? Para que servem os retratos depois que vem a morte e o fim de tudo? Deveriam evaporar no exato segundo do falecer de seus senhorios. Não ficariam assim inúteis e não seriam apenas somente fotos. 
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Temo o triste destino das minhas fotos. Daquele menino de ondulados cabelos ainda louros salpicados de laquê, posando com um olhar distante como quem assustado olha além da infância. Só eu sei daquele menino e de suas confidências e de todos seus esconderijos e mistérios. Só eu sei e ninguém mais. O que será dele naquele retrato quando eu não mais viver? Morrerá o menino comigo, restando a foto que nenhuma pessoa mais olhará.  


Joaquim Cesário de Mello