domingo, 26 de outubro de 2014

...E AGORA JOSÉ?: O SUJEITO INQUIETADO







Caro leitor(a), você já chegou naquele ponto da vida em que se vê pensando e se perguntando qual o sentido de sua existência e de que se vale a pena estar vivo neste mundo? Não? Ainda não? Não se preocupe você tem grandes chances de um dia passar por isso que vulgarmente chamamos de "crise existencial", afinal mudanças e transformações podem nos provocar medos, questionamentos e reflexões sobre a vida e o futuro. Mas não se apavore quanto a tal possibilidade de crise, pois, acaso ocorra, será um momento de oportunidade existencial. Oportunidade de mudarmos a rota de nossas vidas ou de percebermos caminhos outros e alternativos. Ah!, os mistérios humanos e a angústia da não resposta. 
"Quem somos, de onde viemos e para onde iremos", dúvidas e incertezas da Humanidade que agora são individualmente despertadas. Um furacão de ambiguidades, vacilações, indecisões e emoções parecem rugir de dentro de nossas almas, levando-nos a sentir sensações de que estamos perdidos feito um barco à deriva. Entender a morte e o que vem depois dela, Deus, o que estamos fazendo aqui, são coisas que não possuem respostas objetivas, que não conseguimos compreender imediatamente e que teimam em nos atormentar. Embora angustie em princípio, a crise existencial nos remete a tomar melhor consciência dos nossos sentimentos, pensamentos e desejos, enfim, adentrar mais em nossa própria essência. Uma verdadeira odisseia rumo ao interior de quem somos. Um momento nauseante - nos disseres sartreanos - que nos joga em uma posição de um ser-pra-si que questiona, indaga e se impressiona com a realidade e a própria subjetividade.
Segundo o filósofo Jean Paul Sartre a crise existencial se instala e se estabelece quando o sujeito humano percebe a existência de algo errado e passa a se interrogar de suas limitações. É quando somos tomados pela consciência do Nada e, consequentemente levados à angústia de se perceber como um ser inacabado, ao mesmo tempo que compreende ser ele autor de sua vida, embora seja incapaz de construí-la com perfeição. Neste sentido é que reconhecemos o Nada como oposto da plenitude. Desse modo enxergamos a real distância entre onde o ser que gostaria de estar e o ser onde se efetivamente se encontra. 
Na crise existencial defrontamos nossos desejos com a realidade. É quando nos damos conta de que estamos longe da nossa autorrealização, que nossos potenciais ainda não foram otimizados e que estamos vivendo como um homem inacabado e incompleto, que a maioria de nossas escolhas foram nos distanciando de quem poderíamos ser e quem ainda podemos ser. Nos tornarmos uma espécie de estrangeiro de nós. E, então, nos vemos inquietantemente nos perguntando: "o que eu fiz da minha vida?"


A vida deve ter um sentido? Sim. Ao menos para muitos. A sensação de que no dia-a-dia corriqueiro do cotidiano perdemos a razão para se viver, ou que estamos vivendo com a falta dela, pode primeiramente nos angustiar e nos entristecer, mas é, como já dissemos, um momento complexo de profunda reflexão, embora acompanhado de incertezas e dúvidas quanto ao futuro. A antiga e velha "zona de conforto" não mais existe - se é que ela de fato tenha algum dia existido. Estamos desconfortáveis com o aparente e ilusório conforto. É hora, pois, de reagir e de se reinventar. Não é fácil, afinal podemos ainda escolher outros rumos e outras rotas, mas tais escolhas implicam renúncias e responsabilidades, visto que escolher acarreta compromisso, às vezes de sair da "zona de conforto" e me arriscar, inclusive a tentar ser feliz comigo mesmo.
Seja o que lá for a crise existencial do sujeito humano, ela é sempre um diálogo interno. Todos temos desejos reprimidos que devem continuar reprimidos. E todos temos desejos reprimidos que podem ou devem ser desreprimidos para que possamos avançar ainda mais rumo a autenticidade do ser de cada um de nós. Esqueça a perfeição: não somos. Ou como diz o poeta Mário Quintana "buscas a perfeição? Não sejas vulgar, A autenticidade é muito mais difícil".

A despeito das tonalidades afetivas (angústia, tédio, medo, tristeza...) que envolvem a crise existencial, trata-se de uma atmosfera psicológica que pode possibilitar uma saída da mediocridade existencial que restringe e limita o potencial de ser de alguém. Tardio ou não o descortinar do ser abre espaço para a ampliação dos seus horizontes. Para o filósofo Kierkegaard a angústia é a condição que antecede toda e qualquer escolha. E mais uma vez replicando Sartre, “É na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade, ou a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade em seu ser coloca-se a si mesmo em questão". Sabe aquela máxima descarteana do "penso logo sou". Pois é, pensando entramos em crise. Quando pensamos além dos pensamentos prosaicos passamos para uma outra área funcional do pensar que nos leva a interpretar o nosso relacionamento com o mundo, os outros e com nós mesmos. Como disse certa vez o escritor francês Paul Bourget "é preciso viver como se pensa, caso contrário se acabará por pensar como se tem vivido". Eis, portanto, uma das principais finalidades da crise existencial: pensar como se tem vivido (crise) para poder viver condizentemente com o que se pensa.
"Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa", escreve o poeta Fernando Pessoa em seu celebrado poema Tabacaria. E continua: "fiz de mim o que não soube. E o que podia fazer de mim não o fiz." É para isto que entramos em crise. Entramos em crise para evitar que ao fim da linha de uma vida inteira não diga como diz o poeta: "falhei em tudo". É para falhar menos e nos tornarmos singulares que sofremos o sofrer da crise existencial. Ou ainda como escreve Pessoa em seu Livro do Desassossego: "dói-me o universo porque a cabeça me dói". É isto a essência da crise existencial: doer todo o universo que me circunda a partir de dentro de mim.
Se você caro leitor(a) ainda não chegou ao ponto da vida em que se vê perguntando qual o sentido de sua existência no mundo, prepare-se pois você tem chances de poder chegar lá. E não te assustes se este dia um dia chegar, afinal te resta a chance e a saída de ser o que você ainda pode ser. E sendo quem podemos ser, sempre seremos alguém melhor do que hoje somos. Que o futuro que nos aguarda seja o futuro para onde nos dirigimos em nossos sinceros desejos, embora muitas vezes e muitos de nós caminhemos pra lá sem sequer saber pra que lá estamos indo. Somos todos aquele José do poeta Drummond: "você marcha, José!/José, para onde?".

Joaquim Cesário de Mello

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

DIÁRIO DE AULA - EDIÇÃO ESPECIAL







Reproduzimos abaixo a crônica "Amor, o interminável aprendizado", de Afonso Romano de Sant'Anna, com vistas a proporcionar aos alunos da disciplina FAMÍLIA E REALIDADE SOCIAL a reflexão sobre o tema: ENLACE CONJUGAL X DESENLACE CONJUGAL.


"Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado.
Se enganava. Se enganava porque o aprendizado de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é um interminável aprendizado.
Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam.
E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara.
De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos.
A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boêmio, largando marido e filhos. Então, constatou, de novo se enganara.
Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram.
Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor.
O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava.
Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão. O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final. Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não. Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não. E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
Absurdo.
Como pode o amor não coincidir consigo mesmo? Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta?
Coisa de demente. Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente. Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado. Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado. Optou por aceitar a sua ignorância. Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado. E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado".

domingo, 12 de outubro de 2014

HOMO NORMALIS







O homem normal é uma ficção, ele não existe. Normal aqui entendido como alguém plenamente saudável em termos psíquicos. É como diz o dito: "de médico e de louco todos temos um pouco".
Quem não tem uma neurosezinha aqui e acolá? Quem, de vez em quando não TEM seus xiliques, medos infundados, compulsividades, ideações invasivas, manias e tem algum instante ou momento algo meio tresloucado? Porém, não é por se misturar leite com manga que a pessoa é psicologicamente doente ou transtornada mentalmente. Doença ou transtorno propriamente ditos são uma coisa, não ser completamente perfeito e sem falhas, defeitos e vazios é outra. Um homem assim tão normal é parecido como um homem totalmente feliz. É como escreve Tolstói, "todas famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira". Se uma pessoa for muito, mas muito, mas muito mesmo normal, desconfie. Vai vê ele é um normopata. 
Um normopata é aquele que em sua superfície não tem nenhum conflito consigo mesmo e com a vida, com o mundo e com as pessoas. O termo normopata foi introduzido por Joyce McDougall em seu texto chamado "Em defesa de uma certa anormalidade". Uma configuração psíquica excessivamente normal, diz McDougall, é uma normalidade estereotipada, uma hipernormalidade e, por isso mesmo, falsa. Acaba sendo uma espécie de defesa em perceber em si seus conflitos e lidar com eles. Se existir uma pessoa assim normalíssima, ela jamais fará uma mínima e qualquer transgressão, ou botará o pezinho um centímetro sequer além dos estreitos espaços de sua normalidade aprisionante, visto ser ela um conformista extremo. Sim, poderá retrucar o leitor, mas há gente que é certinho demais, politicamente correto demais. Pode ser que no fundo no fundo ela seja é tarada por ser normal. Aí o termo toma outra configuração: normofilia. Um normofílico é na verdade um normopata, haja vista estarmos no âmbito das parafilias. 
Uma vez eu atendi um cara que dizia não ter nada lhe incomodando. Que estava de bem com a vida, o trabalho, com a família, sua sexualidade, com sua vida afetiva e amorosa... enfim, o que trazia ele a um consultório de psicologia clínica? - perguntava-me eu. Demorei um pouco pra entender que ele precisava de um expectador pra tamanha e rara felicidade. Sua normalidade parecia ser entediante, pois ele não pendia momento algum seja pra direita seja pra esquerda. Ele vivia ali em um justo meio. Ainda hoje tenho cá minhas dúvidas: se ele era um exibicionista de sua normalidade, ou eufórico. Pois é, vai ver que pra se ser um cliente em psicoterapia tem que se ser doente ou sofrente. Se não for a gente "adoece" ele. 
Brincadeiras à parte, é como afirma o poeta Mário Quintana: a linha curva é o caminho mais agradável entre dois ponto; a linha reta é uma linha sem imaginação. Se normalidade nos leva à retidão, uma hipernormalidade é uma reta infindável. Sou de opinião que até a normalidade tem que ter seus limites. Pense em um sujeito irrepreensível. Ele não é apenas um sujeito chato, mas um sujeito apagado. Aliás nem sujeito é, na acepção da palavra, visto ser aquele que imobilizado na reta é incapaz de dar um passo em falso qualquer. Uma criança que nunca roubou um bombom nas Lojas Americanas, uma manga no pé do vizinho, que nunca brechou a mulher do próximo, que nunca cometeu uma falta em uma pelada, que jamais trapaceou em um jogo de cartas, que não sabe o quer é filar em prova ou gazear uma aula.
Pessoas assim são como se fossem robotizadas, isto é, comportam-se como se espera dela e não o que autenticamente pode ser. Na normatopatogênese desses indivíduos desprovidos de serem verdadeiramente sujeitos e não objetos de expectativas sociais e/ou alheias, encontramos aquilo que Winnicott denominou de "Falso Self". O Falso Self é uma organização psíquica na qual a normalidade é aparente, uma fachada. Como diz Winnicott são indivíduos tão firmemente ancorados na realidade objetiva que estão doentes em sentido oposto, ou seja, perdem o contato com o mundo subjetivo. Dada as devidas proporções foi o que talvez também quis dizer o poeta Mário Quintana quando disse que a lucidez é a loucura em sentido contrário. O normatopata, que faz menção McDougall, é uma personalidade carente do fator subjetivo e da capacidade de introspecção, prejudicado em externalizar seu "Verdadeiro Self". São aversos em alimentar o elemento subjetivo da vida. São, ainda nos dizeres de McDougall, "indivíduos doentes de sua própria normalidade".
Outro que questiona essa tal de normalidade é Jung quando afirma que "ser 'normal' é o ideal dos que não têm êxito, de todos que se encontram abaixo do nível geral de adaptação". A ênfase aqui é dada a quem evita confrontos por necessitar enormemente integrar-se a grupos sociais. Há um conformismo exacerbado e extremo, tanto pelas regras sociais quanto em corresponder a uma idealização social. Lembremos que uma "normalidade normal" deve ser traduzida tanto em sentimentos de bem-estar consigo próprio quanto com os outros. Normal em sentido de equilíbrio e autenticidade implica tanto comunicar-se com pessoalidade quanto compreender e empatizar. É alguém que consegue utilizar seus recursos e adaptá-los aos inúmeros contextos de vida. É saudável haver o sentimento de pertença, assim como é igualmente saudável saber se diferenciar, individualizar-se. Nos não somos espelhos para apenas refletir o que o mundo externo quer de nós. Somos também dotados de desejos e singularidades. O equilíbrio passa de alguma forma por ambos.
A falta de originalidade, a passividade acrítica e o excesso de mediocridade e conformismo pode nos indicar uma normalidade opressora de uma individualidade e de um sujeito inibido pela couraça de ser sempre normal como se espera que deva ser uma pessoa normal. Desconfiemos, pois, de alguém muito normal, sem conflitos e sem problemas. À primeira vista: de bem com a vida. Jamais haverá ele ou ela de pedir ajuda, afinal ele não sofre e não tem queixas. Um pouquito de rebeldia e transgressão, porém, não faz mal a ninguém. Pelo contrário, faz com que o normal seja aquele que sabe ser diferente e sabe lidar com as diferenças. Ou como escreveu o dramaturgo Bernard Shaw: "precisamos de algumas pessoas malucas, vejam só para onde as pessoas normais nos levaram".
É, ser normal não parece nada fácil. 

Joaquim Cesário de Mello