domingo, 27 de abril de 2014

O último sonho de Gabriel




Jorge Luiz Borges disse que um livro não se inicia no primeiro parágrafo, ele já tem precedentes de outros textos. Senti-me perdendo um texto fundamental quando tomei conhecimento da morte de Gabriel Garcia Marques, pois nesse blogue comentei há quinze dias sobre um livro que havia lido há muitos anos, ainda adolescente, A Incrível e triste história de Erêndira e sua avó desalmada. Perguntei-me: O que me fez pensar  em livros de Garcia Marques  depois de tanto tempo?   (se  não me engano o último que li foi “Memórias de Minhas Putas Tristes”). Minha resposta: não sei, nem sei se saberei responder. De algum modo, minha despedida desse autor  já ocorria. Mas, não estaríamos diariamente nos despedindo das pessoas e das coisas da vida?

Gabriel Garcia Marques foi um escritor que, bem ou mal, marcou a geração dos anos 1970 e 1980 com textos bonitos, simples e, surpreendentemente populares - “Cem anos de solidão” e “Amor nos tempos do cólera” foram best sellers, algo impensável nos dias de hoje. Foi em meio a popularidade que muitos textos de escritores  latino-americanos, inclusive, anteriores a  Gabriel, foram-me apresentados. As tramas de  suas narrativas são instigantes, prende-nos à leitura, mantendo, contudo, as boas reflexões, estilo e erudição. Seus livros podem ser lidos de diversas formas, pois são leituras “polifônicas”, que não provocam aborrecimentos (parafraseando Marcel Proust). Essa "polifonia", se assim posso chamar, é admirável nos bons escritores populares. Sou simpático ao texto que entretém, que seduz, e que inquieta.

Embora seja com um dos maiores representantes do estilo Realismo Mágico, ao contrário do que se vem divulgando, Garcia Marques não criou esse estilo. Há precedentes - embora que com controvérsias - em outros autores latino-americanos. "Pedro Páramo" de Juan Rulfo pode se observar o Realismo Mágico se iniciando. Narra-se em "Pedro Páramo" a história de um sujeito que, depois de saber da morte da mãe, vai à cidade onde esteve quando criança. Lá  encontra seus desconhecidos e possíveis antepassados. A grande virada do livro ocorre quando se constata que as vozes desses ancestrais são fragmentos de falas do passado materno.  A  cidade, em realidade,  é um deserto metafórico que representa nos seus fantasmas a decadência de uma geração. Todos estão mortos.  Esse formato que transita entre o real e o simbólico caracteriza e semeia o Realismo Mágico. 

Se Gabriel não criou esse estilo tão latino-americano, não se pode lhe tirar o mérito de tê-lo consagrado.  Nos seus livros, assim como em Juan Rulfo,  o tempo se relativiza, as metáforas se corporificam e mergulham nos mitos populares. Há um conto que me provoca grande impressão, “O afogado mais bonito do mundo". Título estranho. Um corpo forasteiro e desconhecido é encontrado perto de uma vila, numa rede de pescadores. O corpo - corpo enorme - é, então, levado à vila para ser velado pela comunidade. As mulheres admiram, demoram-se e por fim, apaixonam-se pelo cadáver.  A ideia do corpo grandioso e forasteiro parecia ser o fetiche do carente e miserável lugarejo, onde até a própria morte era-lhe faltosa:  “A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas.”  

Comparo esse texto com “Erêndira” e percebo que há algo de melancólico nas narrativas de Gabriel Garcia Marques. Se há cartase, ocorre na compaixão com seus personagens. A morte, tema  frequente, é um rito bizarro, onde a vida é contingente. Estamos, como disse acima, nos despedindo diariamente uns dos outros e de nossas vidas.  Gabriel conta no prefácio dos “Doze Contos Peregrino” um sonho que sintetiza a metáfora da vida como eterna despedida. E com ele ( e dele) me despeço:


A primeira idéia me ocorreu no começo da década de setenta, a propósito de um sonho esclarecedor que tive depois de estar há cinco anos morando em Barcelona. Sonhei que assistia ao meu próprio enterro, a pé, caminhando entre um grupo de amigos vestidos de luto solene, mas num clima de festa. Todos parecíamos felizes por estarmos juntos. E eu mais que ninguém, por aquela grata oportunidade que a morte me dava de estar com meus amigos da América Latina, os mais antigos, os mais queridos, os que eu não via fazia tempo. Ao final da cerimônia, quando começaram a ir embora, tentei acompanhá–los, mas um deles me fez ver com uma severidade terminante que, para mim, a festa havia acabado. "Você é o único que não pode ir embora", me disse. Só então compreendi que morrer é não estar nunca mais com os amigos. Não sei por que, interpretei aquele sonho exemplar como uma tomada de consciência da minha identidade, e pensei que era um bom ponto de partida para escrever sobre as coisas estranhas que acontecem aos latino–americanos na Europa. Foi um achado alentador, pois havia terminado pouco antes O Outono do Patriarca, que foi meu trabalho mais árduo e arriscado, e não achava por onde continuar”.


Marcos Creder

domingo, 20 de abril de 2014

ENTRE O SONHAR E O POSSÍVEL






Viemos dos sonhos de alguém: nossos pais ou de um deles. Para as gravidezes indesejadas ou não programadas às vezes o sonho pode ser um pesadelo. Todavia entre a descoberta de que se está fecundada e o parto passam-se meses, e até lá entre o saber-se grávida e o fim da gestação circulam fantasias, expectativas, temores e sonhos. Assim, já nascemos embalados pelo imaginário daqueles que nos cercam. E o que somos psicologicamente no início da vida extrauterina quando o sonho dos nossos pais ou substitutos se faz carne? Um amontoado desordenado de zumbidos e sensações. A mente humana não começa já conhecendo o mundo externo e a realidade. Não há nada lá fora, até porque ainda não se sabe que sequer há um lá fora. Um dia o homo sapiens que trazemos como potencial haverá de ser ato; porém no início nosso sapiens não é racional, apenas fantasmático, ou seja, somos primariamente um homo fabulus. Nosso psiquismo em suas qualidades originárias vive imerso em um oceano incomensurável de fantasias. A realidade, ou a interpretação que damos a ela, vem depois.
Judith Viorst, em seu livro Perdas Necessárias, diz que "crescer significa estreitar a distância entre os sonhos e as possibilidades". Em nossos mais autênticos sonhos podemos nos idealizar perfeitos e vivendo em um mundo plenamente feliz. Mas a realidade da vida é que ela é para nós um amontoado contínuo de conexões imperfeitas e inacabadas. Como conciliar então estes aparentes contrários? Como aprender a nos equilibrar entre ambos? Será que a realidade tem que ser sempre o oposto do sonho? Pra início de conversa sei que quando o mundo externo e a realidade invadem paulatinamente a mente humana temos a nossa primeira psíquica perda: a consciência ou a descoberta de que perdemos o útero e que não somos onipotentes e que não habitamos sozinhos a existência, bem como que nossos outros vizinhos da vida são seres separados de nós, cada um com seus desejos que não são exatamente os meus ou os seus. Triste sina essa a de acordar dos oníricos sonhos narcísicos e sair da caverna rumo ao brilho dolente e incomodante da luz. Este é, pois, o nosso destino humano: mudar de sonhos.
Não adianta sonhar ir à Júpiter. Não iremos. Contudo, podemos sonhar em ser astronautas. Podemos não conseguir ser, mas é possível, nem que remotamente. Há sonhos e sonhos. Se o fabular de nossa imaginação fosse apenas quimérico e inexequível e irrealizável, estaríamos ainda vivendo nas cavernas como nossos antepassados ancestrais. Um dia o homem desejou e devaneou voar. Embora sem asas, como os pássaros, voamos; basta comprar a passagem e ir ao aeroporto. Boa viagem.

Sonhando nos voltamos para dentro das nossas ilusões e criamos mundos imaginários. Os sonhos ocupam o espaço subjetivo do futuro. Com eles nos lançamos esperançosos para um amanhã que ainda não chegou com a crença de que chegará modificado pelo poder do nosso encantamento e idear. Concebemos, assim, o ainda não acontecido e saímos das cercanias do instante presente viajando para os instantes do por-vir.

Dom Quixote dizia sonhar o sonho impossível e buscar a estrela inatingível, e por isto lutou contra moinhos de vento. Sim, também sou como Miguel de Cervantes quando escreve "contento-me com pouco, mas desejo muito". Aspiro transgredir os espaço limitados dos meus contentamentos, assim como desejo a realização de todos meus sonhos. Porém reconheço em mim parcas aceitações. A mais sofrente delas é de que não verei muitos dos meus sonhos acordados. A maioria deles, talvez, nunca verão a luz do sol.

Bem jovem sonhei uma companheira e ter uma filha e amigos; ser psicólogo e professor; escrever um livro. Hoje tenho uma companheira, uma filha, amigos, sou psicólogo, professor e escrevi um livro. E o que me resta pro amanhã se realizei os sonhos juvenis? Almejo ser um melhor companheiro, pai, amigo, psicólogo, professor e escritor. Isto o que sou e continuarei a ser: um transeunte dos espaços entre o sonho e o possível. Não basta desejar ser e conseguir ser, é necessário permanecer sendo. O ser é infindo, ao menos quando não finda a existência. A vida inteira de um homem é o esforço em transformar potência em ato. E conservar. E melhorar. E continuar sonhando, pois o sonho é o desejo imaginado e somos humanos exatamente porque desejamos e desejamos porque nos falta. Todo homem é sempre um ser faltante. Falta-nos, inclusive, a realização plena dos nossos sonhos.
O poeta Ruy Espinheira Filho, em seu poema Aniversário, fala-nos que trazemos no peito a mesma fome e a mesma sede do menino e do rapaz: "o mesmo olhar perplexo/o mesmo/sem resposta/gesto crispado interrogando". Embora a noite avance e as janelas aos poucos se apaguem - afirma o poeta - o coração silencioso permanece iluminado. A vida, o mundo, a realidade e todas as adversidades não extinguem a insaciabilidade do sonhar. Ou como diz outro poeta, Fernando Pessoa, "de sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos". Ah, esses poetas!
   Vivemos, mesmo contrariados, na luta entre a realidade e o sonho, entre o possível e o impossível.

"Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as coisas. (...) Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado, materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma, a imperfeição.
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne e o Verbo". 
(Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos/escritor português)

Não, nem tudo é tão possível. Não podemos abraçar a lua, de fato. Podemos imaginar abraçando-a, porém. Nem todo desejo torna-se carne. Alguns sonhos têm o amargo destino de serem sempre somente sonhos. Outros não. Outros nos lançam à frente, além do agora. "Os melhores sonhos de todos são aqueles que nos põem a pensar e a mexer" já dizia o lisboeta Miguel Esteves Cardoso. Embora tenhamos o legítimo desejo de ir para Pasárgada, Pasárgada não existe fora de nós. Diversos são nossos sonhos, alguns encarnáveis e outros não. Se Descartes está certo ao afirmar "penso, logo sou", também não é errado dizer que "espero, logo sou". Há o que é próximo e há o que é distante. Mas também há o impossível. Como lembra Pessoa "o sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele". 

Se a vida em si mesma não é um sonho, os sonhos sustentam a própria vida. A nossa alma sonha e é insone, não dorme nunca. Para lá do sonhar eu posso ser quem ainda não sou, mas também só posso ser quem posso ser se sonhar. O sonhos nos move e viver é movimento. Sonhos parados não são sonhos, são recordações dos nossos incosumados. Quem sonha é expulso de si e avança. Quisera que todos meus sonhos fossem um dia realidade. Este é com certeza o maior dos sonhos. Exceto se formos, afinal, apenas um sonho de um sonhador maior que chamamos de Deus. Será?...

"a vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real".
(Clarice Lispector)

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 13 de abril de 2014

A índole do desejo



Somos criados num suposto mundo racional  e nos surpreendemos com eventos contraditórios, embora, estes sejam os mais corriqueiros da vida. Um texto - uma novela, um conto, não me lembro ao certo - de Gabriel Garcia Marques que li ainda adolescente, me fez pensar mais sobre isso: A  incrível e triste história  de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Faz tempo que o li e, peço perdão aos leitores, pois posso trazer-lhes falsas recordações.  O texto narra a história de Êrendira, adolescente órfã  que, desatenta, provoca acidentalmente um incêndio na casa da avô, que a criara mais como serviçal que como neta. A casa se destrói por completo deixando as duas na rua e sem dinheiro.  A avó, enraivecida, torna-se credora da neta - uma dívida impagável de um dano irreparável. A jovem seria prostituída. Jovem e bonita, todos se compadeciam e desejavam Erêndira. Filas de homens se formaram - eram comerciantes, militares, velhos solitários, transeuntes, jovens tímidos -  para desfrutarem por alguns minutos do corpo de Erêndira. Um deles - cujo o nome não me recordo - rico, bonito e bom (enfim, o príncipe encantado)   se apaixona pela jovem prostituta. A paixão torna-se mútua e os dois resolvem  planejar secretamente uma vida  juntos,  longe, naturalmente, da prostituição e, em especial, da tutela da avó - a velha cafetina se habituara com o conforto que o corpo da neta rendia. Os dois, Erêndira e o jovem Príncipe,  planejaram, então, formas de se ver livre definitivamente  da velha, tramaram o seu assassinato. A avó era uma pessoa horrenda, rústica e cruel, e,  a sua morte traria uma agradável solução ao par de jovem e aos leitores, seria, enfim, o desfecho mais plausível para que tão dramático texto terminasse  com alguma alegria. A velha não faria falta ao mundo.  Na surdina, a dupla tentou assassiná-la de diversas formas, simulou-se acidentes supostamente fatais ou supostas mortes naturais. A senhora, no entanto, parecia imortal, sobrevivia ilesa a todos atentados. Não havia sequer veneno efetivo que a levasse à morte. Em cada tentativa fracassada, a angústia dos dois personagens elevava - cogitaram tratar-se de uma feiticeira. Mas eis que por insistência e perseverança da dupla, e para o agrado de todos que sonhavam com a felicidade do casal,  a velha, enfim, cai na desgraça da morte, sucumbe (penso que) depois de uma ruidosa explosão.   Desaparece. A novela parecia estar chegando ao climax, contudo, faltando ínfimas páginas para o desfecho, a hora do "felizes para sempre" não se efetivou. Erêndira, estabanada, ao constatar a morte da avó, sai porta afora, corre pelas ruas e, no destino, foge de tudo e de todos. Sequer olha para traz.

Que perguntas nos resta fazer diante do inesperado? Será que Erêndira segredava esse ardiloso plano? Os mais pragmáticas responderiam sim, e, acrescentariam algum comentário que desqualificasse a protagonista: má, egoísta, oportunista. Mas há outra hipótese: a de que Erêndira só se deu conta do seu desejo que só pôde emergir no momento da morte da avó. A morte descortinou e abriu janelas para novos horizontes do seu querer. Essa é a hipótese que eu defendo, levando em consideração que não apenas a personagem, mas todos nós, não sabemos ao certo o que desejamos.

Desejos, contrariando lógica racional, não obedecem as mesmas regras do nosso querer. Desejamos sem saber que desejamos, denegamos com frequência nossos desejos -  quantos disseram “eu não quero” e paradoxalmente se viram justamente desejando o "não querer"? ou pelo contrário, quantos disseram "eu quero", e não era bem isso que desejavam? Desejar muitas vezes revela o impensável, eventualmente o inaceitável, como se as palavras desejo proibido, caíssem num pleonasmo, e fossem condensadas sumariamente na palavra, única palavra, desejo. Que impensável é esse que não se revela? ou ainda  qual é a índole do desejo? se se explora os desejos mais escuros e escusos, poder-se-ia dizer que, ao menos, aqueles não revelados, não são muito cordatos. Obedecem a um regramento que estão em frequente tensão com o contrato social. O ser humano é dado a transgredir o que ele mesmo estabeleceu como regra. Se um dos mandamentos é não matarás, um ou outro tentará ir adiante e desafiar essa lei - em larga escala o não matarás é um denegação da condição humana - para os pesquisadores da pré-historia temos fama de assassinos. Há muito tempo ouvi um  psicanalista dizer que essa dialética do desejo/renúncia faz com que o próprio desejo se torne, enfim, um elemento sempre tendente a transgressão - o desejo tende a andar de mão dadas com as suas interdições. A maneira mais sublime de nos distanciarmos desse oráculo às avessas se estabelece com a criação artística. A arte faz do desejo uma metáfora do possível - observe-se que o leitor de Êrendira é conivente e também desejante da morte da velha. 

A índole de Êrendira é a índole da humanidade? Cabe aqui uma ponderação. Êrendira é uma abstração, é uma personagem inscrita (e escrita) na subjetividade de seu criador. Seu criador. Gabriel Garcia Marques, fez como todos fazemos, atenuamos os nossos desejos mais tacanhos em invencionices (a criação). O que salva, engrandece e transforma a humanidade está na sua capacidade de criar. A criatividade amansa nossas forças instintivas individuais tornando-as sociais. A criação sintetiza os nossos desejos entre o desejar propriamente dito e o impedimento. A criação revela uma possibilidade de enxergar, com alguma nitidez, o que se deseja.

***

Gabriel Garcia Marques conta-nos outra história em outro texto: um padre ao tentar salvar a alma de uma jovem do demônio - com o sessões de de exorcismo - encontra a maldade, a doença, a angústia, o desatino que estavam na jovem, e em especial, nele mesmo. Entre os demônios, havia o mais avassalador: o desejo apaixonado do padre pela silenciosa personagem. O nome do livro: “Do amor e outros demônios”. Recomendo.


Marcos Creder

domingo, 6 de abril de 2014

OS DOIS LADOS DA MOEDA

Toda moeda tem dupla face. O ser humano também. Os versos da música "Dentro de Mim Mora um Anjo", letra do poeta Cacaso, fala do anjo de boca pintada que mora dentro de nós e que vive montado em um cavalo que ele sangra de espora. Diz uma estrofe: "ele é meu lado de dentro, eu sou seu lado de fora". Quem já não se pegou brigando internamente consigo mesmo como se fôssemos dois? Quem já não disse "desculpe-me, agi sem querer"? Quem?


A questão da dualidade humana e suas contradições é por demais explorada pelo cinema, literatura, teatro e nas artes de um modo geral. Filmes como "O Cisne Negro", de Darren Aronofsky, ou "A Dupla Vida de Véronique", de Krzysztof Kieslowski; livros como "O Médico e O Monstro", de Robert Stevenson, ou "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde; e peças como "Woyzeck", de Georg Büchner, ou "A Alma Boa de Setsuan", de Bertold Brecht, são exemplos disso. A Psicologia e a Arte andam juntas no perscrutar dual da natureza humana e seu momento lusco-fusco.


O ser humano é por excelência uma dualidade antiética animal/cultura, desejo/moral, mamífero/sapiens. Em algum momento lá atrás na história genealógica da vida nos separamos dos nossos ancestrais primatas. Porém tal separação não nos eleva acima da natureza, pois somos animais como os demais animais, contudo não somente ou unicamente. Em algum lugar longínquo ficou o nosso "elo perdido", aquele que fez com que cada macaco ficasse no seu galho, isto é, os antropoides de um lado e os hominídios sapiens do outro. Fomos, assim, para a periferia da natureza e lá construímos a cultura transgredindo-a, porém deixando um pé na mesma. Quando somos bons chamamos de humanidade, quando somos maus de desumanidade, como se ambos os lados não fizessem parte da mesma moeda.


A natureza humana, ou o que comumente nomeamos de natureza humana, não é rígida e puramente institiva e repetitiva, mas sim maleável cuja forma do momento sofre influência direta do social, da cultura e da história. Somos uma espécie de protoplasma entre o líquido e o sólido. Somos capazes até de irmos de encontro com o mais elementar dos instintos, o instinto de sobrevivência. O ser humano é capaz de armar-se de bombas e se estourar. A ideologia, às vezes, suplanta instintos. 

É habitual falarmos de tal dualidade muitas vezes utilizando de recursos como o poeta Ferreira Gullar: "uma parte de mim é todo mundo/outra parte é ninguém... uma parte de mim é multidão/outra parte estranheza/e solidão". Mas não somos assim um ser constituído de camadas sobrepostas - isto serve como metáfora. Somos o que somos, ou seja, uma totalidade biopsicossoial. Somos os vários em um e o um em vários. Somos um antagonismo convivente e ambulante a suscitar interrogações. Somos contraditórios e incertos, um desconhecido de si próprio que se pensa conhecido, um erro em busca de ser perfeito. É bem provável que não viemos de um paraíso perdido, porém somos andarilhos perdidos em busca de paraíso, Vai lá entender essa coisa chamada de ser humano...


Carl Jung conceituou de Persona e Sombra, sendo a primeira a forma pela qual nos apresentamos ao mundo externo e às pessoas. É através da Persona que nos relacionamos e representamos nossos papéis sociais. Já a Sombra, para Jung, é o centro do inconsciente pessoal humano lá estão nossos mais reprimidos desejos, lembranças e tendências que são moral e egoicamente incompatíveis com a Persona e, por isso, rejeitados pelo sujeito. Sabe aquela parte da gente que a gente não gosta de pensar sobre ela? É algo por aí. É o nosso "lado oculto da lua".

Freud é outro que nos aponta uma possível raiz para tal dualidade. Em "O Mal-Estar na Civilização" discorre ele sobre a incompatibilidade entre a vida civilizada e a felicidade, visto que a vida civilizada pressupõe o interdito e o recalque dos instintos e das pulsões puras. Como diz ele: "“o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança". A agressividade, lembra-nos Freud, é uma disposição instintiva original e auto-subsistente. Amar ao próximo como a si mesmo, prossegue Freud, só pode ser conseguido mediante um controle sobre as pulsões agressivas.
O próprio mundo dos afetos a quem o ser humano é submetido a viver é amplo e complexo. Nosso amplo leque de emoções transitam desde os impulsos mais amorosos até os impulsos mais agressivos. São contrapontos que interagem entre si, lutam e se misturam. Na construção do humano estamos, pois, imergidos no antagonismos de forças opostas e, assim como a luz, a sombra e a escuridão compõe o dia, somos constituídos de paradoxos, antinomias e contradições. Nossa interioridade, indubitavelmente, é constituída de exigências mentais muitas vezes contrárias e opostas. A isto chamamos de conflito psíquico. Tais conflitos geram grande parte de nossas ações e movimentos, mas também podem resultar em paralisações e inércias. Tem gente que vive como que "congelado" e "estanque" como se correr o bicho fosse pegar e se ficar o bicho fosse comer.

Podemos ser bondosos, mas também podemos ser maldosos e vis. A condição humana transita por entre esses dois polos. Em "O Médico e o Monstro" escreve Stevenson que "a maldição do gênero humano foi a de que "esses ramos incompatíveis" ficassem fortemente amarrados um ao outro – que esses gêmeos polares vivessem em luta contínua no angustiado útero da consciência". Nossa argamassa é constituída de incongruências e sentimentos ambíguos. Isso não nos faz, em princípio, maus ou bons. Tudo em grande parte depende como lidamos com as nossas divergências internas. Não é porque somos feitos de opostos que os mesmo sejam para serem vividos apenas em conflito. Na opinião de Jung, por exemplo, alcançamos nosso verdeiro eu, nosso verdadeiro self, na integração e no equilíbrio de todos nossos aspectos. Não era igualmente a proposta freudiana de tornar o inconsciente em consciente? Não é por nos aperceber de componentes psíquicos desagradáveis em nós que nos tornaremos um monstro insano e tresloucado. Pelo contrário: melhor e mais amplamente nos conhecendo podemos controlar mais e melhor nosso ID. Em outras palavras, onde antes era ID que agora seja EGO. Não é, portanto, que por sermos contraditórios que tenhamos que nos contradizer e negar nossa "outra parte". Quanto mais auto-ignorantes somos, mais vulneráveis estamos à instabilidade e à neurose. Meu ser que se conhece e meu ser que não se conhece precisam é mais serem apresentados, pois como diz o poeta "na medida em que sou contraditório/descubro meus centímetros".

O filósofo e ensaísta português Agostinho Silva citava que "contradizer-me me dá segurança de que atingi a verdade possível". Quem em si nega ou não enxerga suas contradições, apenas se vê como que pela metade. Às vezes amo e às vezes odeio o mesmo objeto. Há momentos em que sou sincero, enquanto em outros sinceramente minto. Não me escondo apenas dos meus semelhantes, mas muito mais de mim mesmo. Tenho, como todos temos, uma dupla face: a do lado de dentro e a do lado de fora. Quem me vejo no espelho de mim não sou eu por inteiro. Reflito imagens seja para me distrair seja por temer ou fugir de mim. Talvez esteja certo Ferreira Gullar. Somos fundo sem fundo e "uma parte de mim, pesa, pondera/outra parte delira". Somos permanentes assim como súbitos. O pecado e o arrependimento dormem na mesma cama e sob o mesmo teto chamado alma humana.

Joaquim Cesário de Mello